Paixão segundo G.H. pode ser considerado um
romance existencialista, pois aborda uma série de questões sobre os
limites entre o eu e a realidade. Marcado pela narrativa angustiante de uma protagonista desesperada
diante da condição humana, limitada à criação ora de uma verdade, ora de um
Deus que a conforte diante do abismo que é a existência. A crença em algo que
represente explicações seguras é representada no romance como uma terceira
perna – uma verdade.
Ideia de continuação
corpória, inicialmente identificadas pela terceira perna e em outro momento
pela identificação com o quarto. A personagem procura não apenas
psicológicamente, mas também nas estruturas corpóreas criar prolongamentos que
completem a compreensão de si mesma como existência. O quarto, configura de
certa maneira o interior de G.H., local onde ocorre as reflexões a respeito do
“eu”, ou de certa maneira, da imagem que a personagem tinha de si mesma como
sendo um “não-ser” que a aproximava da verdade, pois só seria possivel ser
negativamente.
Criando partes de seu próprio corpo a
personagem leva ao extremo a ideia de que a realidade só é possível se for
criada, não por mentiras, mas por inventividade. Essa crise do ser tem início
quando a personagem, identificada pelas iniciais G.H., percebe que o ponto de
sustentação de uma verdade a dar conta do inapreensível se perde.
Simbolicamente representado pela imagem de uma terceira perna, ou tripé, G.H.
descreve a crença em uma verdade como algo que ao mesmo tempo protege e impede
que o indivíduo, no caso, ela mesma, se mova diante do abismo da incerteza.
Todo o mistério em torno
da identificação da personagem, a começar pelo nome intensifica o clima
inebriado que envolve sua existência. A metáfora do tripé surge como uma forma
de apoiar a existência, evidenciando a insuficiência dos elementos que até
então a constituíam como ser.
Ao mesmo tempo em que a
perna representava segurança, ela trazia o peso da artificialidade, de uma
fundamentação que excede a própria essência instável e cambaleante do Gênero
Humano. A personagem, então, liberta-se desse membro excedente e
entrega-se a agonia da incerteza, própria da condição humana. Abrir mão de
explicações seguras simboliza uma aceitação da impossibilidade de verdades
puras e estáveis.
Ao perder a crença
fundamental em uma verdade que para a personagem seria absoluta, ela se
liberta, descobre a essência de um ser nunca existente, uma G.H. independente
da necessidade da crença, ela vive na condição das significações simbólicas e
inebriadas. “Perdi alguma coisa que me
era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária”.
No romance desenvolve-se
através de seu personagem, uma idéia trabalhada pela filosofia de Heráclito,
que afirma a não permanência de um estado das coisas. Segundo ele, Tudo é um
constante vir a ser. Nada é. Seja por influência do mundo sobre o homem, ou do
homem sobre o mundo. Nos restando viver sendo, pois ser, não é possível. Viver
uma verdade é domesticar a vida para torná-la familiar.
Essa concepção aparece também
em Jean-Paul Sartre,
quando o filósofo, em O que é literatura,
diz que o homem constrói o mundo e se constrói a partir dele, em uma cadeia
inseparável de ações; gerando assim, uma série de reflexos incompreendidos.
Quando um homem não é capaz de entender que os acontecimentos são conseqüências
desse processo, ele busca o caminho mais fácil, a crença em verdades criadas
para escapar da agonia diante do desconhecido.
Esta resistência em aceitarmos o que
não é facilmente compreendido ocorre devido a dificuldade de aceitarmos o mundo
apenas como ideal inalcançável, como meras representações em nossas mentes. Ao
perder essa idéia de ser, aquilo que antes considerávamos o “eu” se torna
instável.
Essa aproximação da
verdade pelo não ser, descrito pela autora, representa a busca pelo em que
acreditar. A questão não é acreditar, mas sim a constante busca pelo em que
acreditar. G.H. sabe no que acredita porém não sabe por quanto tempo acredita
no que acredita, tendo em mente a consciência do vir a ser, que nos
(des)constrói diariamente. O que não nos permite impor de maneira alguma uma
verdade que não seja temporária. Ela assume o erro como o único caminho para
verdade, pois é no erro que deixamos o conforto do que conhecemos e entendemos.
Não é o conhecimento da coisa em si que faz do homem um
ser privilegiado, mas a sua busca constante. O que nos leva a pensar se
tratamos esse limite do conhecimento de forma apropriada, reconhecendo a
impossibilidade de se chegar a um saber em si. A verdade é algo pequeno, cabível nos limites
do entendimento.
No obra de Clarice,
nota-se que a autora demonstra toda riqueza e angústia existente no místério.
Nada é facilmente compreendido em sua escrita. Ao final da leitura de um texto seu,
temos a certeza de que precisaremos refazer a leitura. A amplitute dos sentidos
ganha proporções infindáveis, profundas, obscuras e envoltas em interelações
quase que infinitas.
Ulisses Maciel