Historia em resumo

A mais séria paródia que jamais ouvi foi esta:"No começo era o absurdo, e o absurdo era, por Deus!, e Deus (divino) era o absurdo." Friedrich Nietzsche

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Murphy, de Samuel Beckett: Uma resenha.

Publicado originalmente em 1938, só agora, com a tradução de Fábio de Souza Andrade e publicação da Cosac Naify, nos é permitido uma leitura em português desse que é o romance inaugural de Samuel Beckett, um dos maiores escritores do século XX. O que o coloca ao lado de nomes como William Shakespeare e James Joyce. Murphy, o primeiro livro escrito pelo autor, não pode deixar de ser considerado um estar entre, pois de certa maneira, Beckett ainda nos permite perceber traços de uma tradição literária, com a qual romperia, logo em seguida, ao compor a famosa trilogia Molloy, Malone morre e o inominável.
O  romance se inicia com uma certa profecia do que estaria por vir: “O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo” (BECKETT, 2013, p. 5). O que podemos entender, como uma demonstração de indiferença. Uma história onde todos os personagens, se encontram interligados em um tipo de corrente existencial, que se projeta na existência do outro, que por sua vez se projeta a outro e assim por diante, adiante. Sem a devida reciprocidade. À margem de uma Londres de outros tempos, onde todos vivem sem muito significado, todos menos Murphy. Ele segue o caminho oposto. Trata-se de um personagem controverso. Que assim como Ulisses, segue errante, porém, por caminhos não pretendidos e despretensiosos em direção ao incerto.
Nesse sentido, Célia, a noiva prostituta e os outros personagens, perpassam a narrativa como sombras que seguem os rastros deixados pelo protagonista no decorrer da trama. Tornando essa busca, uma razão para continuar. Mas “de que serve a luz a um homem cujo o caminho se esconde? (BECKETT, 2013, p. 39), questionaria o professor Neary, em uma determinada passagem do livro. Antecipando, de certa forma, a função que Murphy desempenharia no romance. Guiar os outros personagens por esses caminhos não revelados.
Este espécime de marginal apático, que configura a descrição de nosso anti-herói, não se comove com o mundo a sua volta. Na verdade, interagir torna-se uma tarefa árdua, executada somente quando inevitável. O existir para ele, não é uma luta diária, que por meio do trabalho, perpetuamos. Murphy pensa a existência como uma condição, cuja luta, tiraria toda razão de ser. “Morrer lutando era a perfeita antítese de toda a sua prática, fé e intenção.”(BECKETT, 2013, p. 33).
Nessa busca pela razão do seu existir, Murphy abandona todos a sua volta e deixa-se afundar em um abismo introspectivo do qual dificilmente sairia. Nesse meio tempo, decide vagar pelas ruas da capital inglesa, onde por meio de encontros e desencontros, depara-se com Tincklepenny, um funcionário atordoado pelo ambiente da Mansão Madalena de Misericórdia Mental, o hospital psiquiátrico, onde não suportava mais trabalhar. E é justamente neste novo contexto, que Murphy começa a refletir sobre questões, que até então, não compreendia.
O primeiro estranhamento, resultado deste encontro, é a disposição que o protagonista tem em assumir a posição de Tincklepenny no sanatório. Apesar de Murphy dizer se tratar de um favor que estaria prestando ao amigo, logo nos é revelado que na verdade, ele via naquele ambiente, uma oportunidade de interagir com a natureza da realidade exterior de forma mais pura. Pois naquele mundo a parte que configura o sanatório, os pacientes estavam livres para desfrutar, mesmo que de forma confusa, desse raro privilégio.
E assim, voluntariamente, Murphy buscando retirar-se para seu espírito, adentra o labirinto intransponível do caos que, segundo o narrador da história, etimologicamente se confunde com gás, que por sua vez, seria capaz de fazê-lo “bocejar, rir, chorar, aquecer, deixar de sofrer, viver um pouco mais, morrer um pouco mais cedo”(BECKETT, 2013, p. 137)  
Neste ponto do romance, Samuel Beckett deixa transparecer dois importantes problemas para a filosofia. Provavelmente em consequência das leituras a que o autor se dedicava no momento da composição da obra. O primeiro, relacionado a compreensão da relidade. Ou melhor, a não compreensão de uma realidade pura. Dada a variação condicionada à sensibilidade daquele que a define. Pois, “homens, mulheres e crianças da ciência tinham modos tão variados de prostar diante dos fatos quanto qualquer grupo de iluminados”(BECKETT, 2013, p.138)  Em um segundo momento, quando define as razões do tratamento ao qual os pacientes estavam subjulgados, ele parece estar refletindo sobre o ser da ciência, responsável pela tarefa de estabelecer caminhos que nos permitam transitar de maneira razoável e equilibrada, sobre o abismo caótico que compõe essa realidade exterior.
E é justamente, na busca por um contato imediato com essa natureza da realidade exterior que Murphy, nosso protagonista se perde. Na triste percepção do inglório a que todos estamos condicionados a ser. “Uma partícula ínfima no não visto” (BECKETT, 2013, p. 196).


                                               Ulisses Maciel

Nenhum comentário:

Postar um comentário