Publicado
originalmente em 1938, só agora, com a tradução de Fábio de Souza Andrade e
publicação da Cosac Naify, nos é permitido uma leitura em português desse que é
o romance inaugural de Samuel Beckett, um dos maiores escritores do século XX. O
que o coloca ao lado de nomes como William Shakespeare e James Joyce. Murphy, o primeiro livro escrito pelo
autor, não pode deixar de ser considerado um estar entre, pois de certa
maneira, Beckett ainda nos permite perceber traços de uma tradição literária,
com a qual romperia, logo em seguida, ao compor a famosa trilogia Molloy, Malone morre e o inominável.
O romance se inicia com uma certa profecia do
que estaria por vir: “O sol brilhava, sem
alternativa, sobre o nada de novo” (BECKETT, 2013, p. 5). O que podemos entender, como uma
demonstração de indiferença. Uma história onde todos os personagens, se
encontram interligados em um tipo de corrente existencial, que se projeta na
existência do outro, que por sua vez se projeta a outro e assim por diante,
adiante. Sem a devida reciprocidade. À margem de uma Londres de outros tempos,
onde todos vivem sem muito significado, todos menos Murphy. Ele segue o caminho
oposto. Trata-se de um personagem controverso. Que assim como Ulisses, segue errante, porém, por
caminhos não pretendidos e despretensiosos em direção ao incerto.
Nesse
sentido, Célia, a noiva prostituta e os outros personagens, perpassam a
narrativa como sombras que seguem os rastros deixados pelo protagonista no
decorrer da trama. Tornando essa busca, uma razão para continuar. Mas “de que serve a luz a um homem cujo o
caminho se esconde? (BECKETT, 2013, p. 39), questionaria o professor Neary, em uma determinada passagem do
livro. Antecipando, de certa forma, a função que Murphy desempenharia no
romance. Guiar os outros personagens por esses caminhos não revelados.
Este
espécime de marginal apático, que configura a descrição de nosso anti-herói,
não se comove com o mundo a sua volta. Na verdade, interagir torna-se uma tarefa árdua, executada
somente quando inevitável. O existir para ele, não é uma luta diária, que por
meio do trabalho, perpetuamos. Murphy pensa a existência como uma condição,
cuja luta, tiraria toda razão de ser. “Morrer
lutando era a perfeita antítese de toda a sua prática, fé e intenção.”(BECKETT,
2013, p. 33).
Nessa
busca pela razão do seu existir, Murphy abandona todos a sua volta e deixa-se
afundar em um abismo introspectivo do qual dificilmente sairia. Nesse meio
tempo, decide vagar pelas ruas da capital inglesa, onde por meio de encontros e
desencontros, depara-se com Tincklepenny, um funcionário atordoado pelo
ambiente da Mansão Madalena de Misericórdia Mental, o hospital psiquiátrico,
onde não suportava mais trabalhar. E é justamente neste novo contexto, que
Murphy começa a refletir sobre questões, que até então, não compreendia.
O
primeiro estranhamento, resultado deste encontro, é a disposição que o
protagonista tem em assumir a posição de Tincklepenny no sanatório. Apesar de
Murphy dizer se tratar de um favor que estaria prestando ao amigo, logo nos é
revelado que na verdade, ele via naquele ambiente, uma oportunidade de
interagir com a natureza da realidade exterior de forma mais pura. Pois naquele
mundo a parte que configura o sanatório, os pacientes estavam livres para
desfrutar, mesmo que de forma confusa, desse raro privilégio.
E
assim, voluntariamente, Murphy buscando retirar-se para seu espírito, adentra o
labirinto intransponível do caos que, segundo o narrador da história,
etimologicamente se confunde com gás, que por sua vez, seria capaz de fazê-lo “bocejar, rir, chorar, aquecer, deixar de
sofrer, viver um pouco mais, morrer um pouco mais cedo”(BECKETT, 2013, p.
137)
Neste
ponto do romance, Samuel Beckett deixa transparecer dois importantes problemas para
a filosofia. Provavelmente em consequência das leituras a que o autor se
dedicava no momento da composição da obra. O primeiro, relacionado a
compreensão da relidade. Ou melhor, a não compreensão de uma realidade pura.
Dada a variação condicionada à sensibilidade daquele que a define. Pois, “homens, mulheres e crianças da ciência
tinham modos tão variados de prostar diante dos fatos quanto qualquer grupo de
iluminados”(BECKETT, 2013, p.138) Em
um segundo momento, quando define as razões do tratamento ao qual os pacientes
estavam subjulgados, ele parece estar refletindo sobre o ser da ciência,
responsável pela tarefa de estabelecer caminhos que nos permitam transitar de
maneira razoável e equilibrada, sobre o abismo caótico que compõe essa
realidade exterior.
E é
justamente, na busca por um contato imediato com essa natureza da realidade
exterior que Murphy, nosso protagonista se perde. Na triste percepção do
inglório a que todos estamos condicionados a ser. “Uma partícula ínfima no não visto” (BECKETT, 2013, p. 196).
Ulisses Maciel
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